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Comércio sofre com debandada de funcionários e falta de mão de obra qualificada

A falta de mão de obra qualificada continua a assombrar o comércio varejista - ainda mais com o mercado de trabalho aquecido e registrando o menor nível de desemprego da série histórica do IBGE (6,5%).

Uma pesquisa global da PwC, divulgada em janeiro, dá uma ideia disso: para 41% dos executivos do setor, mais do que inflação, riscos cibernéticos e instabilidade macroeconômica, a falta de colaboradores qualificados é a principal ameaça em 2025, podendo até comprometer a expansão das redes.

Considerado uma espécie de porta de entrada para o mercado de trabalho, o comércio varejista, que se caracteriza por jornadas geralmente longas, poucos fins de semana livres e piso salarial abaixo de dois salários mínimos (muitas vezes sem comissão), registrou taxa de rotatividade de 36,2% em 2024, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). 

Neste contexto, o número de demissões a pedido, ou seja, em que o trabalhador do setor 'pede para sair' para trabalhar em outras áreas (ou até no comércio mesmo, dependendo das condições oferecidas), foi bem significativo. E com um detalhe: dois terços conseguiram se recolocar rapidamente, e ganhando mais. 

Uma pesquisa do MTE, realizada com base em dados do CAGED, confirma esse movimento: em 2024, de um total de 4.205.384 desligados no setor, 40,9%, ou 1.718.691 trabalhadores se encaixaram nesse perfil.  

Outro recorte mais aprofundado dentro dessa análise aponta que 73% desses desligados, que responderam a um painel de múltipla escolha, disseram estar "satisfeitos com a decisão de sair", de acordo com Paula Montagner, subsecretária de estatísticas e estudos do trabalho do MTE, sendo que quatro elementos influenciaram essa mudança: outro emprego em vista (34%), salários baixos (28,9%), problemas éticos com a atuação da empresa (27%) e sentimento de não-valorização no trabalho (26,2%). 

Segundo a subsecretária, os funcionários mais qualificados, satisfeitos com a decisão de sair do antigo emprego no comércio, migraram para "áreas mais sofisticadas", ou que pagam comissão melhor. Ou seja, quem tem um pouco mais de qualificação costuma ir para as áreas de escritório ou até evoluir na carreira de vendas. 

Outra questão que explica a falta de mão de obra e a rotatividade é a ideia de que o comércio é visto como porta de entrada, e não como carreira. "A maioria dos vendedores tem nível médio, então é difícil para quem começa atingir cargos mais altos."

No caso dos profissionais de nível superior, a pesquisa do MTE aponta que estes também buscam outras colocações, sendo que 28,9% migram por motivo de baixos salários, 35% por problemas éticos com a empresa, 27,5% por não reconhecimento e 33% por adoecimento mental provocado pelo estresse.

Ou ainda, motivos tradicionais, como a dificuldade para se deslocar de casa para o trabalho (16,2%). Todas essas questões, segundo a subsecretária do MTE, foram citadas de forma mais intensa na pesquisa, explicando o que tem prejudicado a entrada e a permanência de trabalhadores no comércio.

De acordo com Paula, o funcionário do comércio varejista sempre tenta um upgrade, e isso não atinge só quem vende na porta da loja, mas o setor de modo geral, aponta, lembrando que essa análise ainda captura mais o comportamento do comércio físico que do eletrônico. 

Para segurar o colaborador do comércio, Paula afirma que é fundamental às empresas fazerem um combinado de salário e reconhecimento. Hoje, quanto mais jovem, mais o vendedor fala sobre ética, propósito, quer ser mais bem tratado. E se a empresa oferece a possibilidade de capacitá-lo, dificilmente vai perdê-lo para a concorrência, sinaliza.

"Até as empresas pequenas ou médias, que são as que mais contratam, podem fazer isso: apostar mais no seu funcionário, dando qualificação, instruir melhor as chefias que trabalham com eles e criar elementos, como uma bonificação ou uma simples folga, para garantir sua permanência na atividade. O salário é importante, mas precisa desse outro lado."

PROBLEMA ESTRUTURAL OU CULTURAL?

"Desenvolvimento pessoal."

"Mais técnicas para atender pessoas."

"Peso no currículo."

"Melhor compreensão do meu serviço no dia a dia."

"Capacidade de analisar e tomar decisões."

Os comentários são de alunos de Gestão Comercial da Faculdade do Comércio de São Paulo (FAC-SP), instituição de ensino filiada à Associação Comercial de São Paulo (ACSP), após responderem à pesquisa "Empregabilidade da Matrícula ao Mercado: Como a Faculdade Influenciou a Carreira dos Alunos", elaborada em fevereiro último.

A ideia do levantamento foi confirmar essa tendência de que, quanto melhor a oportunidade, mais chances de deixar o emprego no comércio para assumir outros postos. Do total de respondentes, 42,3% afirmaram que já atuavam no comércio antes da faculdade, sendo que 64,1% representam o perfil geral do setor, com faixa salarial de um a dois salários mínimos.

Perguntados se receberam aumento salarial após ingressarem no curso superior, 42,3% responderam que tiveram reajustes entre 10% e 30% e, desse total, 10,8% conquistaram acima de 30%. Mas a maioria, 57,7%, afirmou que nada mudou. 

No quesito mudança de área, 37,2% pediram demissão para trabalhar na indústria ou serviços após entrarem na faculdade, sendo que 62,8% apontaram a busca por melhores oportunidades como motivação para trocar o emprego no comércio. Para 53,8%, a graduação contribuiu diretamente para o aumento salarial, enquanto para 25,6%, contribuiu apenas em parte. 

Responsável pela pesquisa, a professora Liliane Amikura Yatsu, coordenadora de pós-graduação da FAC-SP, afirma que, se até a pandemia o comércio era uma ponte para fazer carreira em outras áreas, a digitalização forçada fez o pessoal operacional das lojas se qualificar e buscar outros caminhos. 

Ou ir para trabalhos que podem ser executados remotamente, e exigem jornadas menos extensas e mais flexíveis aos fins de semana. Um dos pontos, segundo ela, é que os jovens da Geração Z em diante não têm paciência para trilhar uma trajetória na mesma empresa, na expectativa de um dia conseguir salário ou comissão maior, ou quem sabe almejar cargos mais altos.

"As pessoas querem mais qualidade de vida, não querem mais longas jornadas. Mesmo porque a movimentação nas lojas não é mais a mesma, com o avanço das compras pela internet", afirma. "Por isso, se o colaborador ganha R$ 1,8 mil, mas surge uma vaga para ganhar R$ 1,9 mil sem precisar trabalhar de fim de semana, ele não pensa duas vezes", aponta.

A coordenadora da FAC-SP também diz que, por mais que os lojistas queiram expandir os negócios e contratar, a mentalidade dos colaboradores está mudando - daí esse gap. Por outro lado, a situação desse lojista, que paga muitos impostos e precisa de três a quatro turnos para vender o suficiente e poder arcar com os custos dos colaboradores, também não é fácil. 

Mas as pessoas têm projetos, perspectiva de ganhar mais e trabalhar menos, por isso o varejo operacional acaba sendo um ponto transitório, um quebra-galho, afirma. "E se a empresa não sinalizar 'olha, aqui você pode crescer, se qualificar, ser promovido', o colaborador não vai mesmo querer ficar eternamente no operacional", reforça Liliana.

Ela acredita que uma parceria entre governo, instituições de ensino e o próprio lojista pode ajudar a melhorar esse quadro. Mas, num primeiro momento, se o lojista puder traçar um plano de carreira, nem que seja mais simples, ou oferecer benefícios criativos, como uma folga ou bônus por merecimento, o colaborador trabalha mais engajado, mais feliz, e vai atender o cliente de outra forma. "Aí sim, ele não pensa em trocar de emprego, acaba trazendo um resultado melhor e todos ganham."

Para o diretor da FAC-SP, Wilson Vitório Rodrigues, a questão principal é apostar na qualificação para que, mesmo que historicamente o comércio varejista seja uma porta de entrada para o mercado de trabalho, passe a ser visto por empresas e colaboradores como uma área para fazer carreira.

"Muitos dizem: 'ah, vai ser vendedor ou caixa para bancar a sua faculdade de Direito'. Mas aí é que reside o problema: o Brasil tem um oceano de bacharéis em Direito que não passam no exame da OAB e se tornam 'Uber' depois", afirma ele, que faz um paralelo com o mercado americano, onde o varejo é uma 'supercarreira' e os profissionais se orgulham de serem vendedores.

Já no Brasil, não há essa consideração pelo comércio varejista como carreira estruturada, segundo ele, talvez por uma questão cultural. "A universidade precisa forjar esse profissional para ser um grande vendedor, um gestor de vendas, um líder para fazer carreira nesse sentido. Mesmo que seja uma carreira empreendedora."

Por isso, o varejo, que evolui em ritmo acentuado, segundo Rodrigues, tem dificuldade de repor esses postos: porque precisa de pessoas qualificadas e atualizadas para atender às habilidades que o cargo requer. Ele cita o grande mercado consumidor do país, que já está na mira do varejo da Coreia e da China, como atrativo para os trabalhadores enxergarem o setor como carreira. 

"Nossa sociedade não envelheceu totalmente, tem população economicamente ativa enorme e jovens suficientes para transformar o varejo em carreira. O PortalRH diz que especialistas estimam que as empresas trabalhem com taxa de rotatividade entre 5% a 10%, mas no varejo passa de 36%. Isso é brutal, e tem que mudar."

#ORGULHO DE SER VENDEDOR

Uma empresa tem a missão de gerar lucro, mas suas bases, seus pilares de crescimento, são as pessoas. Por isso, quando se entende que a capacidade de formar colaboradores em massa, especialmente no varejo, é uma forma lógica de reter talentos, o cenário muda positivamente, afirma a psicóloga Zora Viana, especialista em educação corporativa. 

Sócia da FEX Educacional e da Faculdade Brasília, Zora, responsável por criar a universidade corporativa do Consórcio Embracon, acredita, assim como a professora Liliana, da FAC-SP, que a responsabilidade pela qualificação deve ser compartilhada entre governo, instituições de ensino e empresas. 

"Para gerar lucro mais rápido, desenvolver pessoas é uma necessidade básica, mais importante até do que a estrutura física. Mas o varejo não acordou para isso ainda, principalmente o pequeno e o médio. Não existe gente pronta nem no grande."

Em sua avaliação, independentemente do tamanho da empresa, é preciso estabelecer uma rotina, de duas a três horas semanais, para treinar, de estagiários a seniores, e pelo menos ensinar o básico, como dar bom dia, sorrir para o cliente, oferecer um bom atendimento... aí sim, partir para questões mais técnicas. 

Por isso, Zora defende que cada varejista deve criar seu próprio método de treinamento dos colaboradores para atuarem pelas regras de cada negócio, e do varejo em geral. "É mais fácil formar. Eu sempre pergunto para as empresas: quantas horas de treinamento você já tem? É só reunião para discutir meta, mas isso não prepara ninguém para o mercado." 

Criador da Nova Escola de Vendas, que tem como objetivo formar 'do vendedor ao dono', o palestrante Thiago Concer tem mais de 20 anos de experiência nos mais diversos cargos do varejo, de promotor de vendas em supermercados a representante comercial, passando por gerente comercial, de marketing e até apresentador em programas de televendas. 

Com mais de 700 mil profissionais formados em seus cursos presenciais e conteúdos no Youtube, Concer, que também é criador do movimento online #OrgulhodeSerVendedor, tem o propósito de formar cada vez mais pessoas na profissão que é o “coração da empresa", diz.

Isso porque, apesar de vendedor ser o cargo com mais vagas abertas no país, segundo ele, a maioria das pessoas acaba atuando na área por falta de alternativa ou por não exigir tanta qualificação – a não ser o tal tino comercial.

Hoje, afirma, há mais de 150 mil vagas abertas na área de vendas, mas o IBGE mostra que há pelo menos 2 milhões de pessoas desempregadas. “Alguma coisa está errada, pois a conta não fecha”, destaca. Por outro lado, apenas 8% dos profissionais que trabalham com vendas têm algum estudo ou leem livros sobre o tema para alavancar o desempenho. 

Concer lembra que tem muita gente que trabalha 15, 20 anos no varejo, mas em geral enxerga o comércio como uma atividade de passagem, de aprendizado. Mas o problema é que as pessoas não aprendem: trabalham em boas redes, em franquias que têm plataformas de educação, de treinamento, mas saem do mesmo jeito que entraram. 

"Elas não entendem que o bom resultado no lugar que paga pouco é a passagem para outro lugar que paga mais", explica.

O especialista afirma também que, se o que segura o vendedor do comércio é dinheiro, o setor é conhecido pelas margens de lucro apertadas, que não permitem pagar muito acima da média. Então, uma forma de segurar esse profissional é apostar em outro ponto fraco, e que muitas vezes não exige tanto investimento: o treinamento constante.

"Hoje, há materiais na internet de graça. Só no meu YouTube, no meu Instagram, dá para treinar a equipe inteira gratuitamente por anos. Às vezes não dá para pagar bem, mas pagar justamente e treinar é que retém as pessoas na empresa", sinaliza.

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IMAGEM: Thiago Bernardes/DC