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'Não falta mão de obra, o que falta é atratividade para o empregado do varejo'

Há pouco mais de um ano, Ana Maria Lopes, diretora da famosa Casa Santa Luzia, localizada no coração do Jardins, percebeu que não era mais tão fácil preencher as vagas abertas na loja.

E esse quadro se tornava cada vez mais evidente, apesar de os salários oferecidos serem acima do piso mensal da categoria, de R$ 1.976, em São Paulo, e de não abrir aos domingos.

“O problema não era salário e, sim, mais tempo livre”, diz ela. Desde então, o Santa Luzia vem reduzindo as horas de trabalho para que os funcionários possam ter mais tempo de descanso.

O sistema de horas extras está deixando de existir. O pessoal da produção de alimentos tem um sábado de folga por mês, e os gerentes de departamento, um dia livre no meio da semana.

O menor salário da loja, que possui cerca de 700 empregados, todos contratados pelo regime de CLT, é hoje da ordem de R$ 3.500, 84% maior do que o piso.

“Se a pessoa tem um mínimo de experiência, já nem pagamos o piso. Tem funcionário que trabalha na higienização que ganha até mais do que engenheiro”, afirma.

A Casa Santa Luzia já possui há décadas o programa de Participação nos Lucros e Resultados (PLR), uma remuneração que varia com o seu desempenho, pago duas vezes ao ano. 

Com a mexida na carga horária, a loja teve de aumentar o número de funcionários. Hoje, tem aproximadamente 30 vagas disponíveis, de confeiteiro a repositor.

“A pandemia e também as alterações climáticas provocaram um desgaste nas pessoas, um cansaço. As empresas estão aprendendo a lidar com todas essas mudanças”, diz.

Com 10 lojas nas zonas Norte e Oeste de São Paulo, a rede de supermercados Violeta tem 100 postos de trabalho abertos para as mais diversas funções.

Algumas delas são: operador de caixa, repositor, açougueiro, auxiliar de limpeza, cozinheiro, auxiliar de rotisserie, balconista de frios e padeiro.

Assim como a Casa Santa Luzia, a rede decidiu mexer na sua política de RH. Recentemente, contratou uma empresa de consultoria para estabelecer planos de cargos e salários.

“Se um funcionário começa como repositor, por exemplo, ele consegue saber onde ele está e até onde ele pode chegar na empresa”, afirma Luciana Carvalho, diretora de RH da rede.

O Violeta passou a trabalhar com três níveis de cargos e salários.

Para passar de um para o outro, a empresa considera presenças em treinamentos, absenteísmo, disciplina, enfim, todo o histórico de trabalho do empregado.

Os líderes dos departamentos, diz Luciana, sempre são os responsáveis pelas promoções, que, às vezes, são contestadas por pessoas das próprias equipes.

“Quando acontece alguma promoção, surge a questão de o funcionário ser amigo do chefe. Agora, estará muito mais bem definida”, afirma.

O Violeta também fez parceria com uma faculdade. O empregado pode ter curso superior pagando uma mensalidade de R$ 50 e ainda contratou um médico para acompanhar gestantes.

Funcionários que não faltam, recebem R$ 150 a mais no salário. A rede também subsidia plano de saúde e odontológico.

“O funcionário precisa sentir que pertence ao local onde trabalha, por isso estamos o tempo todo pensando em campanhas para datas comemorativas, Dia das Mães, Dia dos Pais.”

Para o Dia das Mães deste ano, por exemplo, a rede decidiu sortear três pacotes para o jantar, com direito a nove acompanhantes, no restaurante Coco Bambu.

“Os requisitos para participar do sorteio ainda estão sendo definidos, mas com certeza um deles vai ser a questão de falta no trabalho”, diz José Eduardo Carvalho, diretor da rede.

A empresa passou a oferecer para os funcionários café da manhã, almoço, jantar, lanche da tarde, além de sopas durante o inverno, tudo para também encantar o trabalhador. 

Análise

Com experiência de décadas em cargos executivos no varejo, Orlando Silva, consultor e conselheiro de empresas, tem a certeza de que, se o varejo adequar salário e jornada, assim como estão fazendo a Casa Santa Luzia e a rede Violeta, vai faltar vaga, não sobrar.

“As redes precisam pensar em escalas mais flexíveis, não só em remuneração, algo mais parecido com a política das indústrias, com a oferta de convênios médicos, por exemplo.”

As lojas que oferecem salário baixo, jornadas exaustivas, nenhum benefício, diz, estão concorrendo com o home office, empregos digitais, empresas de aplicativos.

“Mão de obra está sobrando e quem oferece salários e benefícios está levando o trabalhador. Falar em falta de mão de obra é justificativa para quem oferece condições ruins de trabalho.”

Quando entrou no Carrefour, em 1985, como trainee, lembra ele, colegas ficaram surpresos, até porque a jornada de trabalho era longa, a loja ficava aberta até às 22h, 23h.

“Só que, naquela época, a rede tinha um diferencial enorme de salário. Depois de três anos, já como gerente, ganhava o equivalente a US$ 5 mil por mês, o que levou aqueles colegas a pedir para que eu enviasse também os seus currículos para a empresa.”

Para Silva, o varejo precisa se adaptar ao perfil das pessoas que estão disponíveis para o mercado de trabalho, e salários, benefícios e flexibilidade de horários são fundamentais.

“É preciso repensar a forma de conduzir as contratações. Se as gerações de agora estão reclamando, imagina as que estão por vir”, afirma.

Marcos Escudeiro, consultor, com décadas de experiência no varejo alimentar, afirma que o fato é que o varejo perdeu atratividade, especialmente o setor de supermercados.

O turnover sempre foi muito elevado no setor, da ordem de 70%, especialmente no setor supermercadista. Ultimamente, a situação piorou.

“Por que alguém vai querer ganhar o piso salarial em um supermercado, trabalhar exaustivamente, se pode alugar um carro, trabalhar na Uber e fazer o horário que quiser?”.

No passado, diz, a situação era outra.

“Quando virei gerente de setor em uma rede de supermercados, em 1985, comprei um carro zero. Já em 1995, como CEO de uma rede, meus diretores ganhavam R$ 10 mil, R$ 15 mil por mês. Passados 30 anos, esse é o salário de hoje para muitos desses profissionais.”

Na Espanha

No mundo, a situação não é diferente. Em janeiro deste ano, a rede espanhola de supermercados Mercadona decidiu elevar em 8,5% os salários de seus 100 mil funcionários.

Além de distribuir parte dos lucros, empregados com pelo menos um ano de casa podem receber o equivalente a um salário extra, caso cumpram metas estabelecidas para o ano.

A rede também trabalha com cinco níveis de faixa salarial, alcançados no máximo em cinco anos, o que corresponde a um aumento de 11% a cada nível.

“Se o salário estiver adequado à jornada, pode ter a certeza de que vai aumentar a procura dos trabalhadores pelas vagas ofertadas”, afirma Ricardo Patah, presidente do Sindicato dos Comerciários de São Paulo.

De acordo com ele, os salários pagos pelas redes de supermercados são, em sua maioria, ainda menores do que os do comércio em geral.

“O trabalho nos supermercados é um dos mais ativos do comércio, mais exigente e mais desgastante. Trabalhar seis dias e folgar um é exaustivo. Uma jornada 5 X 2, especialmente para as mulheres, poderia ser bem mais atrativa”, diz.

Em março, a Abras (Associação Brasileira de Supermercados) anunciou que os supermercados brasileiros estavam com quase 360 mil vagas abertas.

Na cidade de São Paulo, de acordo com Patah, são cerca de 25 mil postos de trabalho vagos.

Está nas mãos dos varejistas, de acordo com os especialistas em varejo, e dos próprios lojistas, mudar esse cenário.

O desafio é grande, dizem eles, em razão das novas atividades que não param de surgir, das quais, muitas delas, são possíveis de realizar dentro de casa.

Ana Maria, da Casa Santa Luzia, e Luciana, do Violeta, têm plena consciência de que o mundo do trabalho mudou.

“O lojista tem que se reinventar todo o tempo, pois a grande questão é como será o emprego do futuro e o que vai ter de mudar na legislação trabalhista”, diz Luciana.

“Estamos aprendendo a lidar com os efeitos físicos e psicológicos provocados pela pandemia e também com as mudanças climáticas”, afirma Ana Maria.

Se não houver novas regras para contratação, flexibilização de horários, dizem lojistas e especialistas, vai ficar cada vez mais complicado preencher vagas no mundo do varejo.

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IMAGEM: Casa Santa Luzia/divulgação